“Grandes palavras são necessárias para expressar grandes ideias”

“Prefiro imaginar do que lembrar, por que algumas memórias persistem?” Fala em voz alta, Anne, a caminho da estação de trem.

Eu juro que tentei fazer um texto listando os DEZ motivos para você assistir a série do Netflix, Anne with an “e”, mas eu fracassei, porque eu goxto mexmo é de uma bela prosa.

A identificação com a série foi imediata por conta desse fator também. Ah, quanta prosa! Ah, Green Gables. A série se passa em 1899 e conta a história de Anne, uma orfã que cativa você desde o primeiro minuto. Minto, ela causa certo espanto nos primeiros diálogos porque ela é muito tagarela. Mas sua narrativa é tão cheia de paixão que logo causa comoção no “velho” Matthew, um senhor que adota um menino para ajudar na fazenda, mas no lugar do menino surge a vivaz Anne. Matthew nem tem tempo de contar sobre o engano à pobre garota, pois a mesma, orfã desde os 3 meses de vida, está tão absurdamente feliz em ter sido adotada e se ver livre do orfanato (onde não recebia afeto algum, somente hostilidade) que não dá tempo de reação ao senhor fazendeiro. Ele a admira estupefato. Como pode uma criança ser tão interessante? Ter tantas ideias na cabeça? No caminho até a fazenda eles passam por uma avenida toda repleta de flores brancas que ela dá o nome de Estrada Branca do Deleite. Cheia de imaginação como é, ela diz que a avenida é a única coisa que não pode ser melhorada pela imaginação.

Eles seguem a viagem de carroça até a fazenda de Mattew, que vive com a irmã, ambos solteiros. Os dois já cansados da vida na fazenda, mas isso por conta da idade, eles amam o lugar onde vivem. Durante o trajeto Anne cativa genuinamente Matthew com sua tagarelice. Interiormente, o senhor fazendeiro, já está desistindo de devolver a menina, quando chegam à fazenda. Resta saber se Marilla concordará. A irmã de Matthew, uma senhora rígida e dura como uma pedra (lógico que ela amolece com o tempo hahaha) resolve devolver a menina. Mas desiste também, levada pela compaixão mais do que por qualquer outro sentimento. Anne, por sua vez, quando descobre que veio no lugar de um garoto tenta provar que faz tudo que um menino faz e que cuidará da fazenda como nenhum garoto seria capaz. Afinal de contas, meninas podem fazer tudo o que os meninos fazem, até melhor!

Quer viajar comigo? Vem! Uma história que passeia por campos verdejantes, trafega por rios congelados, fogueiras, lareiras, e muitos chás da tarde, todos permeados com diálogos riquíssimos e muita literatura e poesia.

Eu amo o agito da cidade grande, mas eu amaria viver em Green Gables. Já tive casa no interior e eu sei o quanto gosto do silêncio e da vida slow, da vida simples. Minha mente agitada entra logo numa vibração diferenciada que me permite pensar melhor, refletir, filosofar.

Eu sou uma pessoa simples, e sinto muita falta de relações onde os olhos estão voltados para o outro e não para o celular. Green Gables abriga uma família singular dali em diante, nada de agito e grandes atividades, a vida naquele lugar se resume a acordar, trabalhar, cozinhar, costurar, cuidar dos animais, e a uma boa e bela prosa. Quando é preciso ir à cidade vizinha, para chamar um médico ou comprar roupas ou até mesmo ir aos correios, leva-se um dia inteiro. Para fazer uma visita ao vizinho faz-se necessária uma longa caminhada por entre árvores, belos campos, rios, leva-se outra eternidade, momento em que os personagens vivem suas histórias, seus dramas, conflitos, seus amores também. As visitas, quando chegam a Green Gables, são sempre bem recebidas e convidadas para um chá. Chás e conversas com diálogos ricos, um olhando o outro, sem grandes interrupções. As interrupções eram meras contingências da vida, como um potro que nasce, um vizinho que pede socorro. Os socorros são logo atendidos. Ali, naquela cidade, todos estendem as mãos uns aos outros. Não importa o tempo que leve, mas se a casa do vizinho pegar fogo de madrugada você levanta da cama, se junta aos demais, apaga o fogo e organiza a reconstrução daquele lugar. Hoje em dia não sabemos o nome do nosso vizinho. Estou mentindo?

A sustentabilidade presente durante todos os capítulos, de forma sutil e delicada. Sem energia elétrica, o leite levado em potes de vidro para escola, era armazenado no rio para se manter fresco. Os lanches eram embrulhados em tecidos, que também eram utilizados como estojo. Os guardanapos eram de pano. Anotavam as lições dadas em sala de aula numa lousa que levavam e traziam todos os dias, em vez de usar cadernos e folhas. Aliás, folhas eram tidas como um tesouro. Escreviam cartas, bilhetes, histórias. Anne montou um clube de leitura e escrita na floresta, numa mini-casa feita de troncos de árvores caídos. Lá se reuniam para conversar, escrever e fazer campeonatos de escrita.

Anne é uma menina muito inteligente, esperta, viva, que luta pelos seus direitos, fala a verdade com franqueza e muita sinceridade, doa a quem doer. Ela se refugiava na literatura por conta da realidade dura e muitas vezes cruel a que foi submetida desde bebê. Nunca teve laços de afeto, nunca se sentiu acolhida, nunca se sentiu pertencente a nenhum lugar. Foi obrigada a trabalhar desde muito cedo, amadureceu, ganhou rios de experiência, mas nunca perdeu a docilidade e a inocência de uma criança (no começo da série Anne tem 13 anos).

A série traz à tona diversos temas! Temas atuais, escancarando o preconceito referente à homossexualidade, orfandade, aparência, diferença, gênero, escolhas, raça, nível social, machismo, feminismo. Todos estes temas são abordados e tratados no decorrer da série. Alguns de forma sutil, outros, com a força necessária para que paremos para refletir.

Por exemplo, quando Anne descobre que a tia de Diana, sua melhor amiga, foi casada com uma mulher ela chega em casa e conta para Marilla e Matthew da seguinte forma: “parece que no mundo há muitas formas de amor”. Os dois aprendem mais com Anne durante 3 anos do que aprenderam durante a vida toda. Os dois são transformados por ela ao longo dos anos que passam juntos.

Muitas meninas não pensam o feminismo da mesma forma que Anne, mas todos são transformados por ela. Ela protege uma amiga que sofre abuso e depois fica “falada”. A culpa é sempre da mulher, que não se deu ao respeito. Até a família pensa e age dessa forma, trazendo o desrespeito e a falta de voz para dentro da própria casa. Muitas meninas decidem estudar em vez de casar e isso também era mal visto, como se a mulher nascesse para o casamento.

Eu fui transformada pela minha filha ao longo dos anos, sou de outra geração e pude aprender com ela lições importantes sobre a diferença entre gênero, sobre o machismo reinante da sociedade. É tudo velado para parecer normal, mas precisamos falar sobre isso e ensinar as meninas que elas não nasceram para casar e ter filhos. Isso é uma escolha! Não é obrigatoriedade.

Na série, Anne reluta contra o amor que sente por Gilbert. Na verdade, esse sentimento não é consciente. Ela diz que se casaria com a aventura, mas no decorrer da série os dois se unem cada vez mais.

Logo Gilbert percebe que por trás daquela menina diferente (Anne é ruiva e não se reconhece em nenhum lugar por onde passa, se acha feia e diferente dos outros) existe algo muito especial, ele só não tem coragem de dizer e ao longo da trama eles vão se envolvendo cada vez mais, pois Gilbert também é um menino diferente dos demais. Perde o pai cedo, e ao ficar orfão decide sair de navio, pois não se vê cuidando da fazenda inteira sozinho. Volta com um sócio negro, um rapaz honesto que também tem papel fundamental em toda a trama. Gilbert mostra que é diferente dos demais quando desiste de um casamento arranjado, onde ele sairia lucrando ao ter portas abertas na universidade de medicina, de forma facilitada pelo futuro sogro. Resolve seguir seu coração e não o que é socialmente óbvio.

A escola também cumpre um papel fundamental naquela cidade. Os alunos escrevem para o jornal da escola, mas Anne com um olhar à frente lança críticas à sociedade, trazendo a censura para dentro da trama. Os políticos da cidade tentam impedir o jornal de circular, tentando calar a voz dos estudantes e de uma senhora, membro do conselho, a melhor amiga de Marilla. Liderados por Anne, eles realizam uma manifesto para terem o direito de retomar o jornal. Infelizmente, os políticos ao se verem ameaçados queimam a escola, mas a transformação acontece nesse espaço também.

Os alunos defendem a professora, uma mulher jovem, porém viúva, que mora sozinha e por isso sofre preconceito. A mulher só é respeitada quando tem um senhor por trás. Essa professora vira uma grande líder, pois ensina a eles coisas inspiradoras, os apoia, conversa, dá afeto também. Abre sua casa após o incêndio para que estes jovens (nesse momento aos 16 anos) estudem, já que estão prestes a irem para a Universidade.

A literatura permeia toda a trama, dita por Anne, que desde menina lia, lia muito, e conseguia olhar para a vida de forma poética apesar da tragédia que fora sua vida até então. Ela me lembrou muito as personagens trágicas da Grécia, que pude representar no teatro quando era estudante.

Ah, que delícia deve ter sido para a atriz, representar Anne.

Não pude deixar de sentir a arte japonesa do Ichigo-Ichie presente em toda a narrativa, porque o olhar de Anne a todo momento captava as nuances do momento presente. Ela dava nome aos rios, ela se entregava aos relacionamentos (quando fez amizade com a índia), ela olhava tudo com imenso interesse. Vez ou outra ela retornava ao passado, onde havia muito sofrimento, era impossível não voltar e fazer analogias com o que fora vivido, mas logo ela era transportada para o momento presente e fazia de cada instante um mágico presente; ao florir os chapéus com flores, ao inventar rituais com sua melhor amiga, ao conversar com a amiga imaginária. Ao distribuir afeto a todos que se aproximassem dela. Anne é boa, sem ser idiota. Anne é autêntica. Uma personagem inspiradora e apaixonante.

Mas poesia mesmo acontecia quando alguém ganhava um presente. Diferente dos dias atuais, onde já vimos tudo, onde as coisas sãos banais e corriqueiras, por serem comuns, na série quando alguém ganhava um presente era como se houvesse uma festa. Esse presente era guardado como um tesouro, e era um tesouro. Tudo que existia naquela cidade era único, sem cópia, então, cada objeto era precioso. Não só o objeto, mas o gesto de amor. Quando Anne ganha de Gilbert um mini-dicionário para que pratique a soletração (eles viviam competindo na escola) ou quando a amiga de Anne ganha de seu admirador um presente, que ele mesmo ganhou num jogo no circo que é montado na cidade. Os olhos brilham de tão especial e único que é aquele presente.

Eu não queria que esse texto virasse um spoiler gigante, mas virou! Mas saiba que nada disso a impedirá de assistir e se encantar, ainda mais quando você souber que a presença de uma personal organizer teria garantido a vitória de Anne numa competição de bolos. Nossa, isso me deixou imensamente feliz. Lá, em Green Gables um vidro contendo essência de baunilha na verdade continha outro ingrediente. A baunilha acabou, Marilla colocou um ingrediente novo no recipiente e se esqueceu de trocar a etiqueta com o nome do novo conteúdo. Anne usou em sua receita achando que fosse baunilha e quando os jurados provaram o bolo. Já era. Marilla riu muito. Matthew também.

Organização é tudo, até em Green Gables.

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